quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Avaliação de Desempenho VIII - Pedido de demissão de um avaliador

Declaração do professor José Maria Cardoso, representante da Área Disciplinar de Geografia da Escola Secundária Alcaides de Faria – Barcelos


“as metodologias de avaliação correspondem a construções científicas que actuam sobre «juízos de valor» de forma a transformá-los em «juízos com utilidade»”.

E. G. Guba e Y. S. Lincoln (1989)


A presente exposição de fundamentos tem por intenção solicitar a demissão do cargo de avaliador de desempenho dos docentes da Área Disciplinar que represento.

Começo por dizer que esta declaração deve ser entendida como uma posição pessoal que ninguém mais vincula do que eu próprio e que nada tem contra alguém em particular, nomeadamente a professora-coordenadora do departamento curricular de Ciências Geográficas e Matemáticas ao qual pertenço que, tal como está determinado nas suas competências, foi quem me atribuiu o supracitado cargo. Aliás, atesto com autenticidade que, dentro da lógica funcional invocada, as decisões e a metodologia de delegação de poderes e competências utilizado pela coordenadora foi um processo sensato, democrático e ajustado à realidade profissional dos elementos que compõem o departamento.

Também quero referir que o motivo do protesto aqui apresentado não é pelo facto de existir uma avaliação profissional, até porque considero esta importante e necessária como forma de regular a qualidade do ensino ministrado na Escola Pública enquanto serviço universal, gratuito e garante de igualdade de oportunidades. O que ponho em causa e contesto é o paradigma, a conduta e os objectivos subjacentes à regulamentação avaliativa que nos estão a impor. Manifesto veementemente total e absoluta discordância com o processo de avaliação do desempenho dos docentes instituído pelo decreto regulamentar nº 2 / 2008 de 10 de Janeiro.

Sob pena de adulterar a dignidade de ser professor dentro da dialéctica do ensinar/ aprendendo, não posso nunca aceitar esta perspectiva hierarquizante e unilateral, burocrática e redutora, que concebe a avaliação como um correctivo numa espécie de produto a quantificar cujo objectivo é que alguns - poucos, os raros, alcancem o mérito, pelo demérito dos outros - muitos, os vulgares.

Sempre defendi, como um princípio basilar de postura pessoal e profissional, a lisura de procedimentos, a lealdade de relacionamentos e a justeza de apreciações. Evocando a ideia de que a escola é um território de construção do homem e que a sua função é mais do ser do que do saber e entendendo a nossa profissão como uma simbiose sinergética de conhecimento/aprendizagem e formação/educação num processo de contextualização sócio-formativa, é lógico de admitir que os valores e atitudes por nós demonstrados e vivenciados são referência e modelo para os nossos alunos. Temos de saber construir a escola com uma cultura profissional colaborativa e de avaliação conjunta e com a justa percepção de que o que se passa na escola marca a personalidade de quem formamos e a qualidade do ensino que ministramos.

O que o ME nos apresenta como modelo de avaliação intencionalmente subverte todos estes valores e perigosamente abre o caminho do individual, bem ao jeito selvático do “salve-se quem puder”.

Como é que nós vamos explicar aos nossos alunos que a avaliação é um processo transparente, democrático e com igualdade de oportunidades, se o que fazemos entre nós é contrário? - modelo impositivo, selectivo e nebuloso.

Como é que nós vamos explicar aos nossos alunos que a avaliação é um processo formativo, que se desenvolve no tempo e por reflexão individual e colectiva, se o que fazemos intra-pares é oposto? - modelo piramidal, quantitativo e unilateral.

Como é que vamos explicar aos nossos alunos que a avaliação é um processo de negociação a construir, que se deve pautar por uma metodologia de contínua interacção através de uma análise crítica e de auto-confrontação entre o obtido e o pretendido, se o que fazemos connosco é antagónico? - modelo funcionalista, burocrático e punitivo.

Considerando, como é óbvio, que o conceito de avaliar não é unívoco, é hoje consensual que existe uma clara distinção entre avaliação e medição, sendo aceite genericamente considerar avaliação como a investigação sistemática do valor ou mérito de um objecto, mesmo que este possa ter diferentes acepções.

Tendo como base o princípio da chamada quarta geração da avaliação, onde o avaliador assume o papel de orquestrador num processo de negociação, bem ao jeito do paradigma construtivista em que os avaliados são (co)autores de todo o decurso, entendo que a avaliação só faz sentido se for integradora e de co-participação em todos os procedimentos numa lógica de responsabilização repartida pelo papel que cada um desempenha para o benefício colectivo.

Um modelo de avaliação do desempenho docente tem, em primeiro lugar, de ser conhecido e compreendido pelos professores, e estes têm que sentir a garantia que a sua efectiva exequibilidade é uma mais-valia pessoal e profissional. Por outro lado, tem de prospectivar, realística e consensualmente, propósitos que contribuam para o progresso da qualidade do trabalho pedagógico que vise um verdadeiro aperfeiçoamento da aprendizagem dos alunos.

Avalia-se dentro de uma pedagogia interactiva em que a definição de objectivos terá obrigatoriamente de ser a melhoria das partes para um melhor sistema, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento das escolas, do ensino e da educação.

Tenho muitas dúvidas se o interesse da avaliação que nos estão a impor é esse e tenho muita certeza que o resultado nunca esse será.


Em função do exposto e considerando que…

1 – …não aceito que a avaliação de desempenho da minha profissão se transforme num mero procedimento de controlo burocrático-administrativo que hierarquiza professores pelas tarefas e não pelas competências, pelos níveis classificativos dos alunos e não pelos resultados sociais, pelo número de faltas a que legalmente têm direito e não pela eficiência e condições da presença, pela obediência acrítica e não pela confrontação de ideias;

2 – …não pactuo com um sistema que nos quer transformar em ordeiros criadores de fichas, em sapientes fazedores de planificações, em verdugos controladores de lacunas, em zelosos examinadores de aulas e em indefectíveis classificadores de pares, ao serviço de um poder que hierarquizou a carreira para confundir a classe, contaminando e destabilizando o ambiente escolar bem ao jeito do “dividir para reinar”. Não nos retirem tempo e paciência que obste a missão digna que nos foi confiada que é a de ensinar;

3 – …não consinto que a lógica estrutural de concepção que subjaz ao modelo de avaliação submetido decorra de uma estrita preocupação economicista ao estancar a progressão de carreira a cerca de 75% dos professores, na medida que ao impor quotas para as menções de “Excelente” e “Muito Bom”, desvirtua qualquer perspectiva de mérito assente nos conhecimentos, capacidades e competências. É a leviandade de um processo ao préstimo da conveniência do momento sem tão-pouco precaver os efeitos perversos de futuro;

4 – …não me sinto convenientemente preparado para avaliar os meus colegas, até porque não me foi oferecida qualquer formação nesse sentido. Não me sinto vocacionado para exercer o cargo de avaliador inter-pares, até porque nunca considerei ser essa uma das atribuições enquanto professor. Não me sinto identificado com o modelo institucionalizado, até porque não acredito minimamente nos seus instrumentos de operacionalização nem na sua credibilidade da melhoria do sistema de ensino. Antes pelo contrário, tenho a convicção que a aplicação deste pseudo-modelo de avaliação, sustentado pela arbitrariedade de decisões e associado ao novo regime de gestão que pretende governamentalizar a vida das escolas, irá gerar uma torrente de desigualdades e concomitantes injustiças;

5 - …não me parece que seja possível ultrapassar uma exigência legal plasmada no Código do Processo Administrativo, quando no seu Artigo 37º, referente aos requisitos de acto de delegação de competências ou poderes, no ponto dois se diz taxativamente o seguinte: “Os actos de delegação e subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação no Diário da República, ou, tratando-se da administração local, no boletim da autarquia, e devem ser afixados nos lugares de estilo quando tal boletim não exista."
Não querendo fazer desta prerrogativa legal o espaço de luta pela contrariedade ao processo instituído, julgo, contudo, que é de todo importante lembrar aos responsáveis ministeriais, que se auto-intitulam de desvelados cumpridores, que as leis, quando em vigor, se aplicam a todos;

6 - …tenho o direito de não querer embarcar neste irresponsável aventureirismo avaliativo de consequências imprevisíveis, e muito menos quero dar a minha fiança ao modelo assumindo o papel de professor-avaliador, o que me transfigura numa peça-chave deste xadrez complexo que não quero jogar. Urge saber defender a Escola Pública com qualidade e, para isso, é necessário reflectir e agir com a tranquilidade obrigatória das decisões assertivas. Não podemos correr riscos e temos de fazer da avaliação de desempenho dos docentes uma oportunidade única de melhorar todo o sistema escolar e contribuir decisivamente para a construção de um novo e sustentado arquétipo de educação em Portugal.

Eu, abaixo-assinado, venho por este meio apresentar ao Conselho Executivo, ao Conselho Pedagógico e à Comissão de Coordenação da Avaliação do Desempenho do Pessoal Docente da Escola Secundária Alcaides de Faria, o meu pedido de demissão do cargo de avaliador para o qual fui indigitado e sobre o qual ainda não iniciei funções.

Barcelos, 06 de Outubro de 2008


(José Maria Barbosa Cardoso)
Professor do Quadro de Nomeação Definitiva e Representante da Área Disciplinar de Geografia da Escola Secundária Alcaides de Faria – Barcelos

[recebido por mail]

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